terça-feira, 26 de maio de 2009

POESIA NA AGULHA

POESIA NA AGULHA

Elas bordam Guimarães Rosa
Mulheres do Grupo Teia de Aranha traduzem, de forma lúdica, uma das mais belas obras da literatura brasileira - Grande Sertão: Veredas


Assim como Guimarães Rosa tecia cada palavra com extremo requinte e originalidade, as bordadeiras recriam em imensos painéis ou ainda em retalhos de tecido o universo desse mago da linguagem. Sim, o sertão também está dentro delas, funcionárias públicas, professoras aposentadas. Aninhou-se ali em 2001, tomando posse do acalentado desejo do grupo de fazer trabalhos manuais. O primeiro fio dessa delicada teia foi urdido pela estudiosa da obra Neuma Cavalcante, que encontrou no universo do autor a essência para um trabalho coletivo. E foi desse modo que o grupo se embrenhou pelas páginas de Grande Sertão: Veredas e por muitas outras paragens...


E é verdade verdadeira que Nivea, Rioco, Rosa, Cristina, Maria Alice e Bete não sabiam bordar nadinha. Elas confessam. Mesmo assim, encantaram-se com a idéia de Neuma de formar o grupo. O assunto nem bem tinha se assentado quando se depararam com um grande desafio: montar seis painéis que servissem de cenário para as contadoras de história Dôra Guimarães e Elisa Almeida. Em seis meses, o Grande Sertão: Veredas bordado embarcava para Portugal. A teia não parou mais de crescer. Se alastrou por Cordiburgo, terra natal de Guimarães Rosa, Morro da Garça, em Minas Gerais, e até no Ceará, onde Neuma tece outro pedaço dessa trama...


“O sertão no olhar de Guimarães é universal. Elemento de reflexões do homem com ele mesmo”, diz Beth. “Ele era um estudioso da língua da formação das palavras”, completa Rosa. É com essa alma sempre maravilhada que as mulheres da Teia se reúnem uma vez por semana. Nesse dia, pesquisam a vida e a obra do autor, elaboram os riscos e bordam, bordam, bordam... Cada uma pega uma parte do pano, faz o ponto que não tem nome, troca prosas sobre a vida e alegra-se com o resultado de tantas histórias passadas na linha. Ao término de cada encontro, o efeito é grandioso. Afinal, essa teia quer apenas regalar corações e mentes.







sexta-feira, 1 de maio de 2009

Guimarães Rosa: o pensador

"As pessoas não morrerm, ficam encantadas".

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Guimarães Rosa: o pensador


"A escrita é uma e a falada outra língua, bem diferentes. A primeira precisa ser trabalhada, artesanada, caprichada, com a maior valorização da palavra e da sintaxe. Falar é mineira a pedra bruta; escrever é lapidar, burilar, apurar".

quarta-feira, 8 de abril de 2009

BRINQUEDOS DE GUIMARÃES ROSA


“Um dia ainda hei de escrever um pequeno tratado de brinquedos para meninos quietos”, prometeu certa vez João Guimarães Rosa, um dos escritores mais estudados da literatura brasileira. A tarefa ficou inconclusa, mas serviu de inspiração para a excelente exposição Meninos Quietos, no SESC Pinheiros, em São Paulo.

Nascido em 1908, o mineiro João Guimarães Rosa costuma ser lembrado pela complexidade de sua linguagem; pelas metáforas, paradoxos e ambigüidades de seus textos, pelo aspecto universal de seu regionalismo. Autor de obras-primas como Sagarana (1946), Grande sertão: Veredas (1956) e Primeiras estórias (1962), sua obra já foi analisada sob diversos prismas: filosófico, psicanalítico, metalingüístico, histórico, geográfico, sociológico etc. Poucas vezes, entretanto, foi dada atenção ao menino do interior que morou no coração do escritor, anterior ao médico ou ao diplomata Guimarães Rosa.

Joãozito, como os familiares o chamavam, gostava de colecionar borboletas, tanajuras, besouros. Passava horas fiscalizando o vaivém das formigas e a arquitetura dos cupinzeiros. Deliciava-se com a sinfonia teimosa das cigarras. Seu interesse pela história natural o levava também a alterar o curso dos fiozinhos d'água que vinham do trabalho árduo das lavadeiras. Cada fiozinho era um rio, Danúbio ou São Francisco, e passava por cidades imaginárias. A propósito de seus primeiros anos, diria mais tarde o escritor: “Não gosto de falar da infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodando a gente, estragando os prazeres.[...] Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia: de prender formiguinhas, em ilhas que eram pedras postas num tanque raso e, unidas por pauzinhos, pontes para formiguinha passar, de armar alçapões para apanhar sanhaços e depois tornar a soltá-los: uma maravilha. Puxar sabugos de espigas de milho, feito boizinhos de carro. Pena era não dispor de tinta para desensabugar um boi verde. [...] Um dia ainda hei de escrever um pequeno tratado de brinquedos para meninos quietos”.

A promessa não foi cumprida, mas serviu de inspiração para a exposição Meninos Quietos, que aconteceu gratuitamente em junho de 2006 no SESC Pinheiros – SP. Nela foram reunidos os brinquedos das crianças do sertão de Minas Gerais e presentes na literatura de João Guimarães Rosa. Trazidos do local onde o escritor nasceu e se inspirou para escrever sua obra, esses brinquedos revelam uma cultura primitivamente universal, presente não somente no dia-a-dia das crianças que vivem nesta região e interagem com a natureza ainda viva do cerrado, mas também no imaginário infantil como um todo.

A concepção cenográfica, assinada pela artista plástica Anne Vidal, traduz em sete núcleos – Brincar de pensar, Brincar de sensações, Brincar de criar, Brincar de olhar, Brincar de geografia, Brincar de colecionar e Brincar de segredos – o universo infantil com o intuito de sensibilizar as pessoas para a importância das criações do cotidiano e despertar o gosto pela preservação de suas memórias mais simples.

Os visitantes penetram um ambiente mágico onde seus sentidos e sentimentos são estimulados por meio de cantigas e histórias populares; bonecas e bichos feitos de milho, cabaça e pano; fotografias; pinturas; esteiras de palha; banquinhos de madeira; sementes, gravetos e pedrinhas. Arte e brinquedo se confundem na exposição.


O trabalho é fruto de uma longa pesquisa, desenvolvida por uma menina que tem os olhos verdes de Diadorim. Um dia essa menina encontrou-se perdida entre livros e ficou fascinada pelo mundo de Guimarães Rosa. Ela é Selma Maria, arte-educadora e pesquisadora que há dez anos estuda os brinquedos da cultura brasileira.
Desde o dia em que esse encontro ocorreu, ela passou a perseguir um objetivo: resgatar entre as crianças do sertão “receitas de vida quieta”. A seguir, em entrevista concedida ao Portal Literal, ela fala do trabalho que desenvolveu no interior de Minas e de sua relação com a obra de Guimarães Rosa.


Clique no link abaixo para ler a entrevista completa concedida ao Portal Literal a Ana Lúcia Tsusui.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

LEMNISCATA ??!!
Mas que diabo é isso?

s.f. 1. Curva geométrica em formato de 8. s.m. 2. Símbolo do Infinito.
Fonte: Dicionários Houaiss.


Ao recordar a palavra que Rosa inicia a narrativa de “Grande Sertão: Veredas” – Nonada – e a que a finda – Travessia – , seguida de uma lemniscata, o sinal que simboliza o infinito, Castro diz que o escritor, “ao abordar o Sertão, fala do que não sabe, do que ninguém sabe. Por isso parte do nada em busca do Tudo” (CASTRO, 1976, p. 44). O sertão, como a manifestação projetiva de alguém ou algo que se encontra sempre a caminho, é um lugar de passagem do não-ser para o ser. Sendo physis, ao abarcar o mundo em sua totalidade, o sertão dimensiona a circularidade dinâmica da vida. Guimarães Rosa, em um diálogo com Günter Lorenz, realizado em um Congresso de Escritores Latino-Americanos, em Gênova, no ano de 1965, afirmou: “...este pequeno mundo do sertão, este mundo original e cheio de contrastes, é para mim o símbolo, diria mesmo o modelo de meu universo” (ROSA apud LORENZ, 1983, p.966). Disse Rosa a Lorenz: “No sertão, cada homem pode se encontrar ou se perder. As duas coisas são possíveis. Como critério, ele tem apenas a sua inteligência e sua capacidade de adivinhar. Nada mais” (ROSA apud LORENZ, 1983, p. 94).

CASTRO, Manuel Antônio de. A Poética da Poiesis como Questão. Rio de Janeiro: Disponível no site: http: // www.travessiapoetica.com. 2005. -------------------------------------- O Canto das Sereias: da Escuta à Travessia Poética. Rio de Janeiro: Disponível no site: http: // www.travessiapoetica.com. 2003. -------------------------------------- O Homem Provisório no Grande Ser-tão: um estudo de Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro; e Brasília: Instituto Nacional do Livro – MEC, 1976. ------------------------------------- Poiesis, Sujeito e Metafísica. In: CASTRO, Manuel Antônio de (org.). A Construção Poética do Real. Rio de Janeiro: Sette Letras, 2004.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Novo Livro de Ensaios sobre Guimarães Rosa: Desenveredando Rosa


DESENVEREDANDO ROSA
Kathrin Holzermayr Rosenfield

Guimarães Rosa tem vários lados de montar. Tem quem chegue em sua obra pelo pitoresco da linguagem, pelas excentricidades e invenções. Tem também quem dele se aproxime para ler depoimento sobre o mundo sertanejo, com sua geografia e história. Tem ainda quem mergulhe em suas páginas para desvendar enigmas que, de tão repetidos pelo sistema escolar e pela crítica, entraram para o repertório da cultura letrada brasileira, na linha do “É verdade que o jagunço Diadorim não é homem?” Tem também quem não pagou ainda seu ingresso pessoal para ganhar o direito de usufruir do patrimônio sensacional que o escritor legou à língua portuguesa, o que é uma pena mas, por outro lado, é uma riqueza: como disse creio que García Márquez esses tempos, é de invejar quem nunca leu um clássico, como o Dom Quixote, porque ainda pode vir a experimentar o maravilhamento, a revelação que só as obras magnas da experiência humana podem proporcionar.

Guimarães Rosa desde que apareceu foi um pequeno escândalo. No ano de 1956, redondo meio século atrás, ele lançou sua obra-prima, "Grande Sertão: Veredas", e, como se não quisesse deixar por pouco, ainda outra maravilha, o volume "Corpo de Baile", integrado por sete novelas. Viu-se então que a trilha aberta dez anos antes, com "Sagarana", realmente alcançava o nível de uma realização indesmentível da cultura da língua portuguesa e da vida brasileira, realização que ninguém mais podia ignorar. (Um teste rápido que o leitor pode fazer: pensar quem são os autores que, por sua excelência, não podem ser desconsiderados para saber quem são os grandes do pedaço. Há tantos escritores iguais entre si, no estilo ou no tema, que certamente podem ser postos de parte, porque, mesmo que suas obras valham a pena, proporcionando prazer e inteligência ao leitor, não empurraram para mais adiante o horizonte da língua e da cultura em que se expressam.)

A fortuna crítica que se foi formando em torno de Guimarães Rosa, assim, só fez crescer ao longo do tempo. Também aqui as posições de interpretação são variadíssimas, indo do mais minucioso levantamento factual e lingüístico ao mais amplo vôo interpretativo. É nesse campo das grandes interpretações que se inscreve o novo trabalho de Kathrin Holzermayr Rosenfield. Professora da Filosofia da UFRGS, ativa participante da vida cultural da cidade e do país desde que chegou ao Brasil, vinda da Europa (é austríaca de nascimento, e estudou na França), Kathrin freqüenta Guimarães Rosa há anos. Já publicou de artigos singulares a livros (como "Os Descaminhos do Demo", que vai receber reedição revista, pela Topbooks), alcançando agora um ponto de inegável maturidade com "Desenveredando Rosa" (Editora Topbooks, 393 páginas, R$ 43), reunião de estudos que, digo sem fazer concessão nenhuma, fazem subir a temperatura e o alcance do debate sobre Rosa.

Não só pela pertinácia da autora o novo livro tem méritos altos. Também é mérito de Kathrin sua lente de leitura, que é preciosa e muito rara no Brasil: dominando a série filosófica e a literatura, suas áreas de formação, e agora tendo-se habilitado na tradição dos grandes comentaristas da civilização brasileira – Gilberto Freyre, Sérgio Buarque, mas também Oliveira Vianna, Antonio Candido e outros –, ela pode fazer falar seu objeto de estudo em patamar alto. Acresce que o trabalho que ora se publica tem, como componente fundamental, o ângulo de interpretação instruído pela psicanálise, no melhor e mais profícuo modelo. Nada daquela grosseria antiga, que levava a tentar desvendar a psicologia do autor através das linhas de sua obra. Nada, igualmente, da leitura individualizante, que tomasse o texto literário como sintomático de um ou outro homem. Na mão de Kathrin, se trata de auscultar o texto, deixar falar o texto, aceitando seus termos em si mesmos, como significativos de um discurso cujo âmbito de circulação é a vida social e mental do país, da cultura em que brotou aquela obra em particular. Daí poder-se ver agora, na obra em lançamento, o grande alcance interpretativo que nasce do cruzamento harmonioso entre esses vários elementos: a perspectiva informada pela história da filosofia ocidental, a consciência clara sobre o debate nacional brasileiro travado pelos grandes analistas, o manejo do debate crítico ligado à literatura ocidental, incluída a brasileira, tudo repassado pelo método digamos psicanalítico, que é capaz de desventrar do texto nexos e sugestões apenas insinuados, que em regra repousam apenas na percepção intuitiva do leitor mas que o trabalho analítico traz à tona. O sertão passa a ser psíquico, sem nunca deixar de ser geográfico e radicalmente social.

Dos oito capítulos, cada qual um ensaio independente mas sempre em torno da obra de Rosa, me chamaram a atenção muito particularmente alguns. O primeiro examina a forma do conto em Guimarães Rosa, com direito a visitar o conto de Simões Lopes Neto, autor que sai maior do cotejo. Já aqui aparece uma virtude do trabalho, que está num esforço bem realizado de nomear com precisão tanto os aspectos do texto (por exemplo, a observação de que Rosa escreve espalhando “uma névoa de nomes e imagens”), quanto os traços da recepção por parte do leitor. O capítulo segundo arma uma equação que quer saber os nexos profundos entre o poeta que Rosa pretendeu ser, com aquele malogrado livro "Magma", e o intelectual aparelhado que ele de fato foi, mas fazendo confluir tudo isso numa prosa inventiva. Aqui Kathrin abre o leque das referências, retraçando ligações entre Rosa e a tradição européia moderna mas também com as fontes mais remotas, os Vedas e os pré-socráticos.

Esta mesma trilha aparece no capítulo 3, em que se trata de derrubar a ilusão de espontaneidade ou de esoterismo, muitas vezes consideradas como a verdadeira atitude de Guimarães Rosa em sua criação. O capítulo se encarrega justamente de demonstrar a consciência ilustrada do intelectual Guimarães Rosa, que se abastecia de muita literatura e muita filosofia para tramar sua obra, que, por outro lado, realmente dá a sensação de pura intuição. O capítulo 4, meu preferido, coloca Rosa em diálogo com ninguém menos que Goethe e Dostoievski, sem nada de gratuito na aproximação (estamos no território da interpretação empenhada, nas antípodas da gratuidade da literatura-comparada-para-americano-ver). Kathrin encontra neles, particularmente no russo e em Rosa, uma atitude que, na superfície, é conservadora e antimodernizante, mas que é mais que isso — sua obra, diz ela numa fórmula preciosa e de grande alcance, que certamente vai render muito debate, representa um “trabalho de luto” pelas pessoas, símbolos e vínculos sociais que vão sendo deixados para trás nos arrancos da modernização, que atropelou tanto a Rússia dos 1870 quanto o Brasil sertanejo dos 1930.
Lendo Rosa em cotejo constante com outro grande da cultura brasileira, Euclides de Cunha, pensando-o em paralelo parcial com Machado de Assis, lendo-o como um pensador que soube transformar consciência aguda em arte requintada, reaproximando-o de suas leituras formadoras (como Musil e Freyre), o livro de Kathrin Rosenfield avança em território novo e promissor do debate crítico brasileiro, ajudando muito a iluminar com luz adequada a obra desse gênio da língua.

Kathrin Holzermayr Rosenfield nasceu na Áustria, fez doutorado sobre literatura, história e filosofia em Paris (com J. Le Goff) e em Salzburg, Áustria. Ela vive no Brasil desde 1984. É pesquisadora do CNPq, e leciona na UFRGS, nos PPG Letras e PPG Filosofia. Criou o Núcleo Filosofia-Literatura-Arte em 2000 e dirige esse centro de pesquisa que desenvolve as relações entre pesquisa acadêmica, criação artística e comunicação com a sociedade, promovendo eventos científicos e espetáculos como Antígona (2004-5) e Hamlet (2006-7). Entre outros livros, publicou recentemente Antígona de Sófocles (trad. Lawrence F. Pereira, notas Kathrin H. Rosenfield), Rio de Janeiro, Topbooks, 2006. Desenveredando Rosa. Ensaios sobre a obra de J. G. Rosa, Rio de Janeiro, Topbooks, 2006 (450 pp.) e Estética, Zahar, Rio de Janeiro (Passo a Passo), 2006. Grande Sertão Veredas – Roteiro de leitura, Topbooks 2008.

LUÍS AUGUSTO FISCHER / Professor e escritor. Autor de "Quatro Negros"
Publicado no caderno Cultura do "Zero Hora", de Porto Alegre, em 08.04.2006

segunda-feira, 30 de março de 2009

Diário de Hamburgo de Guimarães Rosa pode não ser publicado por uma briga entre filha e madrasta



"A mulher mais importante da vida de Guimarães Rosa foi minha mãe, que lhe deu duas filhas".

A relação entre a família de Aracy Guimarães Rosa (na foto ao lado), a grande companheira do escritor, e as duas filhas do primeiro casamento é turbulenta. Um dos principais pontos de discórdia é a publicação do diário que João Guimarães Rosa escreveu, entre 1938 e 1942, quando era cônsul-adjunto em Hamburgo, na Alemanha. A família de Aracy gostaria de vê-lo publicado. As filhas, até hoje, barraram o projeto. No centenário de ambos - Aracy e Rosa - ciúmes, vaidades e velhos ressentimentos ganham contornos de um romance que Rosa jamais escreveria.

Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa foi funcionária do consulado brasileiro em Hamburgo e salvou dezenas de judeus na Segunda Guerra Mundial. Ela faz 100 anos no domingo 20 de abril. Em 1982, Aracy recebeu o título de “Justa entre as Nações”, conferido pelo Museu do Holocausto, em Jerusalém, a não-judeus que ajudaram judeus a escapar do nazismo.
No diário de Hamburgo, Rosa narra sua indignação com as atrocidades cotidianas cometidas contra os judeus. É discreto, porém, nas referências a Aracy.
Vilma Guimarães Rosa disse a revista ÉPOCA que não havia publicado o diário em respeito ao desejo do pai. “Primeiro, não é um diário. São duas cadernetas com anotações. Eu perguntei ao meu pai por que não publicava e ele disse que não queria a publicação”, afirma. “Hoje, penso que talvez meu pai mudasse de idéia, se estivesse vivo. Então, pretendo publicar o diário, se minha irmã concordar. Se eu decidir, sei que ela vai concordar. Mas não há data prevista.” Vilma é autora de Relembramentos - João Guimarães Rosa, meu pai (Nova Fronteira).
Às vésperas de completar um século de vida, Aracy já não pode dar sua versão dos fatos. Ela sofre de Alzheimer. Teve um único filho, do primeiro casamento. Quando conheceu Rosa, na Alemanha, era desquitada. Sua família afirma que a própria Aracy emprestou o diário a Vilma - e que nunca foi devolvido. “A Vilma pediu a minha avó, depois que Joãozinho (Guimarães Rosa) morreu, e minha avó emprestou. Quando pedimos a Vilma a devolução dos originais, ela disse que estava com sua irmã, Agnes. Os originais nunca mais apareceram”, afirma Eduardo Tess Filho, neto de Aracy. Vilma contesta a informação. “Meu pai me deu as cadernetas no meu aniversário de 1967, na casa de Chiquita Marcondes, que, como diz minha irmã, foi seu amor de outono”, afirma.
Pelo menos uma cópia do diário é conhecida. As versões sobre sua origem também divergem. Segundo Eduardo Tess Filho, antes de emprestar o diário a Vilma, Aracy deu as cadernetas aos proprietários da Xerox do Brasil para que fizessem cópias. Isso teria sido em 1973 - seis anos depois da data em que Vilma afirma ter sido presenteada com as cadernetas. Uma das cópias está na Universidade Federal de Minas Gerais. Trechos do diário foram publicados pela revista Bravo!, na edição de fevereiro deste ano.